Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

9.3.05

Ammorbidente, de Amara Amberlini (Itália, 2004)

Desta vez, um livro italiano interessante, curioso, bom e, é claro, de uma ilustre desconhecida. É impressionante, por vezes, constatar a existência de tantas obras boas e praticamente desconhecidas do grande público. No Brasil é assim, na Itália também é. Na verdade, estas obras se escondem por conta da falta de investimento genuíno, sem qualquer interesse, por parte de grandes conglomerados editoriais. Culpa, também, das distribuidoras de livros, verdadeiras sanguessugas dos intelectos, que atuam com a conivência editorial e encarecem o preço de um produto que deveria ser vendido a preços populares para que, justamente, o povo pudesse ter acesso, ampliando o público leitor e, conseqüentemente, ampliando vendas, o que implicaria em redução de custos e mais leitores ainda. Acredite, a Europa toda tem seus exemplos de cegueira. Mas lá, ao contrário, não existe o preconceito contra edições de bolso. Muitos autores conseguem se projetar – ou tentar – deste modo. As edicole podem não ter muito espaço, mas, dependendo do gênero literário, as portas estão abertas. A ficção científica, o suspense, o terror e, notadamente, o gênero policial estão presentes de modo firme pelas bancas de revista e revistarias da Bota. É disfarçado de giallo que se encontra o intrigante livro de Amara Amberlini.
Não há registro dela pela internet. Até onde sei, pode inclusive ser um pseudônimo (prática comum em todos os países que publicam literatura barata). Não me importa. Para mim, o que capturou a atenção não foi a biografia do autor, mas, sim, o modo como a trama é conduzida. Começa, enfim, com um assassinato. Um homem, de 50 anos, é encontrado morto defronte a um prédio em Roma. Não era onde o corpo, em vida, morava. Por vinte páginas, se é induzido a acreditar que estamos acompanhado a história de se desvendar esta morte estranha. Mas não. Logo após a equipe de legistas sair do prédio, o foco continua no edifício. E lá se concentraria por toda a trama.
Não quero com isso dizer que a história é sobre os moradores do prédio e seus estranhos motivos. Nada disso. Também são os moradores um acessório para que se conte a história do prédio. Para isso, Amberlini se utiliza de vários flashbacks, de modo que, em princípio, é dífícil se localizar temporalmente. Mas ela dá toques – sutis, mas eficientes – que permitem que o leitor não se perca. E, assim, descobrimos que o prédio possui uma história aterradora, tendo, em sua composição, inclusive corpos de construtores mortos durando o erigir da construção. E que a combinação destas almas, espíritos ou personalidades conferem a cada parede daquele lugar propriedades maléficas. Que, com o passar dos anos, afetam os personagens que passam por ali: uma dona-de-casa recém-separada, um ex-policial, um carabinieri, uma assistente social, um cantor lírico em começo de carreira, um padeiro e um pedreiro, este último um dos que ajudaram a levantar o antigo espigão e fio condutor do livro de Amara.
A idéia, em si, não é nova. De modo mais lírico, o estadunidense Will Eisner a utilizou numa edição especial intitulada The Building: a graphic novel about the life and death of a city building (publicada no Brasil em fevereiro de 1989 pela Editora Abril). No entanto, na história de Eisner, narrador gráfico morto no último dia 3 de janeiro, o desfecho é bem mais poético que na pequena narrativa tétrica e de palavras fortes de Amberlini, que termina de modo mordaz e irônico: o edifício (sem nome citado na história, mas que, por uma dica de personagem, aparentemente se chama Giovanni Bruno) induz alguns moradores a iniciarem um incêndio que, em pouco tempo, não deixa qualquer sobrevivente, apesar de deixar praticamente intacta a estrutura forte do prédio. O título, Ammorbidente, obviamente é sarcástico, pois nada há de amaciante, de suavizante no livro: as histórias de amor não vingam, os empregos não permitem ascensão ou inexistem, os corações se endurecem e a paranóia impera. O único final feliz (e a que preço) só poderia ser o do edifício, já que, com o incêndio, reformas serão necessárias. E reformas implicam em novos homens, novas mortes e, com sorte, uma nova gama de inquilinos. Tudo para satisfazer o espírito de vingança dos seus ex-moradores, que agora são o edifício – um espírito similar ao dos veteranos de faculdades nos anos 70, 80 e 90, que, quando calouros, sofriam com os próprios veteranos e, por isso, precisavam imputar em novos calouros as mesmas penas, se não maiores.
Para não ter pesadelos à noite, leia numa casa, na praia ou num campo descoberto.

6.3.05

Törvénytisztelet, de Hanna Madai (Hungria, 2003)

Um dos livros mais novos de minha coleção, representando a nova literatura húngara. Esqueça o livro do Chico Buarque (que não é ruim, apenas dissonante com a recente efervescência literária magiar) e atenha-se à seguinte informação: Paulo Coelho, hoje, é o autor mais vendido por aquelas bandas. Não estou brincando nem um pouco: o homem está à frente de Salman Rushdie, que virá ao Brasil em julho para divulgar suas obras. Dois estrangeiros entre os mais vendidos? Não se deixe enganar tão facilmente, existe ebulição por ali.
Autores novíssimos, como o bom Péter Nádas, vêm abrindo a porteira antigamente escondida pela Cortina de Ferro. É o caso, também, de Hanna Madai. Em comum aos dois autores, a temática. O livro de Péter, Saját halál (Experiência pessoal de morte), conta a história de um grande escritor após a sua morte. Já o livro de Madai, Törvénytisztelet (palavrão que quer dizer, apenas, medo), relata o pavor de uma atriz que, recuperada de um acidente no qual teve o cérebro lesionado, começa a deixar de perceber a luz, sendo introduzida a um cotidiano sombrio e tétrico. Falemos mais sobre esta experiência.
O que poderia ser um exercício de realismo fantástico, surpreendentemente, é tornado uma história com a qual um leitor mediano pode sinceramente se identificar. A fatalidade que ocorre com Anja (leia-se Ânia), um absurdo – uma lâmina de guilhotina cai de um prédio justamente na hora em que ela estava passando na calçada, ouvindo o CD Gran Turismo, dos suecos do Cardigans –, é a única coisa mais incomum. E, ainda assim, justamente este fato é verossímil. Ou, ao menos, é o que a autora quer que pensemos quando dedica a obra a sua amiga de infância, também chamada Anja.
O fato é que somos jogados na ação, sempre cronologicamente, mas não se perde muito tempo entre o acidente e o início da exuberante situação da atriz. Quero reforçar isso, percebam: não é como se ela estivesse ficando cega. Ela realmente perde a percepção que possuía da luminosidade. Pense, por exemplo, no monitor de vídeo no qual você está lendo isso. Diminua totalmente o brilho do mesmo. Fez? Agora diminua, lentamente, o contraste. Repara na sutil diferença? O mundo dela continua visível, cada vez menos, mas o fato é que se torna sombrio. O que faz com que sua percepção acerca das pessoas também seja influenciada por isso. Uma cena linda, por sua tristeza, é quando ela percebe que Sándor, seu namorado, que radiava à luz do sol, agora parece tão belo quanto um vaso antigo – e tão empolgante quanto.
Imagine, então, quando ela começa a reparar que o lado negro de cada pessoa, sempre disfarçado por máscaras sociais, maquiagens e por sorrisos à luz do dia, agora aflora violentamente. Pois, à medida que o brilho some, a nitidez de tudo se torna impressionante. Quase como se tivesse o aguçado olhar de uma ave de caça. Todos, das pessoas na rua aos amigos e empregadores do set de filmagem de seu novo filme (homônimo ao título do livro), se tornam, aos olhos de Anja, insuportavelmente temíveis. E o filme, que continua a ser rodado, torna-se a melhor experiência de fuga para ela, que é a protagonista. Na película, Anja é Monika, que se vê acuada num quarto do qual nunca sai, sendo alimentada sempre por enfermeiros diferentes e tratada, a cada dia, como se fosse uma pessoa diferente. Mas é tamanha a paranóia real na mente de Anja que, a cada dia de filmagem, a situação de sua personagem lhe parece dar tão pouco medo que, aos poucos, ela percebe que a única alegria que ainda possui é interpretar o medo de mentira e sem verossimilhança de Monika. Pois, quando as filmagens acabarem, Anja saberá que a única coisa que a espera é o verdadeiro medo.
Um belíssimo livro de terror psicológico, com poucos personagens, 224 páginas impressas competentemente e um inesperado autógrafo da autora, natural de Budapeste e que me abordou quando eu lia tranqüilo seu livro em uma pequena praça da cidade, no último mês de junho. A Hungria, meus caros, pode ser surpreendente. Garanto.