Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

21.1.05

Posto Espacial Cabral, de Severiano Paes de Coimbra (Portugal, 1955)

A atmosfera naïf e o inusitado achado de um livro português de ficção científica me fizeram a delícia do mês que passei em Portugal, no ano de 2003. O livro foi encontrado num alfarrábio (que é como eles chamam os sebos na terrinha) da cidade de Coimbra, chamado Livraria Alfarrabista Miguel Carvalho, se minha memória não estiver me pregando uma peça. Um item que me saiu bem caro (€ 19,00), mas valeu cada minuto de diversão que tive. Um título que, no entanto, foi completamente eliminado da história oficial da Portugália Editora, casa que publicou este seu volume de ficção científica, estilo que nunca fez parte da postura editorial da mesma. Quando entrei em contato para conseguir maiores informações, recebi a resposta de que nunca tinham publicado nenhum livro com este nome, muito menos de tal autor. Mas o fato é que o livro, já no mesmo estilo gráfico que consagraria, poucos anos depois, o livro Aparição, de Vergílio Ferreira, continha, em fonte tipo futura, o nome da casa editorial, numa capa certamente inovadora para a época.
Entende-se, no entanto, o motivo pelo qual Posto Espacial Cabral é desconsiderado, inclusive, pela crítica lusitana. Não se possui um só registro digno de nota de autores lusos tradicionais de ficção científica. A incompreensão, maior inimiga dos escritores que pensam além, certamente vitimou Paes de Coimbra e legou a ele o triste fardo do esquecimento. E, já que ninguém resgatou seu texto inteligente e galhofeiro, eis-me aqui a fazer isto. Devo começar dizendo que, sem dúvida nenhuma, o autor devia ter um espírito jovem e aventureiro, além de, provavelmente, não morar em sua terra natal, mas, sim, nos Estados Unidos ou Inglaterra. Isto se deduz por várias passagens parecerem se remeter a seriados como Tom Corbett - Space Cadet, Captain Video, Space Patrol, Rod Brown of the Rocket Rangers, Atom Squad, Rocky Jones - Space Ranger e, inclusive, o famigerado Commando Cody - Sky Marshall of the Universe. As referências são muito claras. Há um detalhe, no entanto, que une todas estas séries antigas de televisão: todas foram canceladas entre 1954 e 1955, numa verdadeira caça às bruxas espacial que apenas 10 anos depois, com o advento de Lost in Space, viria a sumir. Somado ao clima de perseguição existente também na vida prática, com o chamado macarthismo em vigência, certamente foram os dois maiores fatores que influenciaram Severiano Paes de Coimbra a escrever sua obra, quase um compêndio da inocência ficcional da tevê daqueles tempos e seu reflexo na população leiga daqueles longínqüos anos 50. Tudo isso, no entanto, com um humor que não era habitual à época.
Após esta longa introdução, o livro em si. Ele narra as aventuras dos habitantes do Posto Espacial Cabral, que possui exatamente nove moradores: oito frentistas e o proprietário do posto, Sr. Quincas. Pensou que fosse uma estação espacial? Pois o título se refere mesmo a um posto de combustível espacial, o único além de Júpiter, que abastecia todos os tipos de naves, culturas e tipos de propulsão. A ação começa quando, após rápidas apresentações (e um clima de pouco movimento no posto, que me lembrou muito uma antiga campanha dos Postos São Paulo cujo slogan era uma paródia do da Esso), o foguete do Comodoro Cauby, Marmelão do Universo Espacial, chega ao posto informando que a Terra está em guerra com uma nova raça alienígena e que o Posto Espacial Cabral, a partir daquele momento, tinha o desígnio de também espionar toda e qualquer nave que lá chegasse.
E, assim, os meros frentistas galácticos se envolveram em aventuras que iam desde amazonas netunianas interessadas em sugar os glóbulos brancos dos terráqueos que viviam em Marte até conter a invasão de miniaturas de lendas do folclore português a uma caneca cheia de café, que para os invasores era como ouro negro. Desventuras tresloucadas, vividas pelos personagens Pingo (o negro), Macau (o asiático), Jocá (o mulherengo), Pinto (o triste), Querubim (o doido), Bordalo (o trabalhador), Quintana (o sonhador) e Bó (o jogador). Um sem-número de situações é criada e o posto se torna, cada vez mais, um pandemônio. Até o momento em que o Cadete Cósmico Antônio Corvetta chegue e anuncie o fim da guerra e a normalidade. Que parece ser um alívio, mas que faz o livro terminar com um grande gancho para uma série, visto que, nas últimas duas páginas, percebemos que Quincas, na verdade, é um alienígena espião dos humanos, rindo de todas as cenas aprontadas e todas as teorias absurdas de conspiração, sendo que o verdadeiro espião esteve, sempre, no nariz de todos -- e assim continuaria.
Uma bela homenagem, feita com sagacidade. Se fosse publicado nos Estados Unidos, a aventura hoje seria um best-seller. Em Portugal, porém, foi sorte encontrá-la num alfarrábio. Tinha, inclusive, um pequeno rasgo na contracapa. Mas valeu cada centavo, ainda mais porque a edição está autografada.