Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

19.1.05

Hitting the hay, de Carlos Widmark (EUA, 1964)

Não gosto muito de falar dos autores estadunidenses, mas, de vez em quando, abro uma exceção. Existem narradores críticos, como Nathaniel West, bem como os beats. E um ou outro novo escritor que pode mesmo se destacar. Aliás, interessante notar como os grandes best sellers atuais em literatura estão mais à Europa. Já repararam? Pois então esqueça isso e concentre-se neste livro, estréia de Carlos Widmark na literatura.
O livro conta a história de Flint, que, a cada um dos 35 pequenos capítulos, começa a ação justamente indo para a cama (o significado da expressão hit the hay é justamente ir para a cama -- dormir, claro). A cada uma destas idas (que, fica claro para o leitor, não significam a passagem de um dia para o outro, pois, por vezes, o espaço é de semanas ou meses), Flint descobre um objeto estranho. Como se vivesse um momento estranho a cada vez que acordasse. Não é apenas o objeto que é estranho: toda a vida de Flint muda completamente a cada despertar. Mais bizarro ainda é que, para o personagem, mecânico de carros, tudo é muito natural. Pegue-se, por exemplo, Martha. No primeiro capítulo, percebe-se que ela é sua noiva, meiga, delicada, uma flor de pessoa, dessas bem raras de se encontrar. Ela desaparece por três capítulos e ressurge no quinto, vil, vingativa, com uma cor de cabelo diferente e pronta a matar o mecânico, se necessário. Neste quinto capítulo não há nenhuma menção sequer do amor dos dois, nem mesmo por parte de Flint. Que também sofre mudanças, inclusive perceptíveis para o leitor: é no capítulo 16 que Flint passa a se chamar Flimt, assim sendo até os quatro últimos trechos do livro, quando seu nome passa a ser grafado do modo original.
Flint percebe, já pelo décimo despertar, que algumas peças que ele encontra (e guarda) se conectam umas às outras. Ele acredita que as peças vão formar algo importante. Mas, como ele age como se tudo estivesse normal a cada capítulo, é muito claro que ele não tenciona resolver mistério algum e nem fazer as coisas tornarem ao normal. Pois tudo é normal para Flint ou Flimt. Tudo caminha para o final sem qualquer evidência de que as coisas vão se encaixar ou se resolver. Mas a problemática acaba confluindo, toda, no capítulo final, na verdade o único deles que não é numerado. Nesta hora descobrimos que tudo o que lêramos até então era completamente verdadeiro e, exatamente aí, residia o paradoxo a ser resolvido. Pois, realmente, a peça faltante se encaixou. E qual o sentido dela? De mostrar que todas as histórias, por mais absurdas que estivessem, estavam ligadas, sim, por um personagem sonso e dissimulado como Flint, que pôde, enfim, perceber a beleza da junção das peças que combinou e pôde, assim, conquistar o seu grande prêmio após este cansativo empenho: ir novamente para a cama.
Um livro cíclico e sem moral, que se utiliza de técnicas vanguardistas para mostrar que nada vale a pena. O niilismo presente é de uma dor aguda para o leitor arguto, que percebe a inutilidade do que acabara de ler e que, no entanto, se conforma com as últimas palavras de Oscar Wilde no fim do prefácio de O retrato de Dorian Gray: "Toda arte é inútil". Para se reler e, então, notar a fina armadilha da construção da rota literária, certamente muito bem urdida. Um dos melhores exemplos de literatura contemporânea nos Estados Unidos. Porém, como acontece em quase todos os livros de minha coleção, Carlos Widmark morreu na mais completa obscuridade. Após o fracasso total de Hitting the Hay, publicado pela Stripress, do Wyoming, ele ainda publicaria, três anos depois, Walking, um volume de contos fantásticos que levou ao seu suicídio, meses após o lançamento. Mas outra crítica específica discutirá este outro volume.