Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

17.1.05

A kinky Arismat tale, de Geoff Lyndsay (Austrália, 1987)

Esta coleção de críticas não poderia começar por outro livro. Este exemplar, até onde consegui apurar, o único publicado por Geoff Lyndsay (hoje um corretor de seguros em Brisbane, Austrália -- não confuda com o editor da publicação médica Afasic Abstract, que, inclusive, é publicada na Inglaterra, nada tendo, portanto, a ver com esta crítica) impressiona pela fluidez de sua narrativa, extremamente ágil e vívida. O mesmo tipo de narrativa que o leitor poderia encontrar, anos mais tarde, em volumes de autores como Douglas Coupland e Nick Hornby. Porém, Lyndsay faz questão de ser tanto mais profundo em seus questionamentos como mais bruto, sem que, com isso, perca a veia pop que está incrustada ao longo de seu livro, um volume de 212 páginas editadas pela modesta e provavelmente falida Didjeridoo Press (da qual não obtive mais nenhum livro de seu catálogo, o que me leva a pensar que, talvez, este volume seja o único de sua curta vida). Mas, enfim, ao livro.
Arismat, ao contrário que se possa pensar, não é o nome de uma pessoa, mas, sim, o de uma banda de rock australiana que deseja, a todo custo, chegar ao topo. E que, em 1984, ano em que ocorre a ação do livro, recebe um convite para abrir o show da banda Midnight Oil. A banda é composta por cinco membros, que, como as prostitutas da rua Augusta ou de Montmartre, apenas são conhecidos por um único nome: Rags, Mate, Ulivar, Colin e Powl. E a banda, que aparece unida em torno de um objetivo comum no início da história, se perde em ganância e bizarrice durante o período de um mês que está entre o convite e a data do show.
Ulivar, a despeito do nome estranho, era a pessoa que tentava, a todo custo, manter os membros coesos para a realização do sonho. Infelizmente, o personagem se perde tanto no jogo de concessões e favorecimentos entre os membros que sua mente, aos poucos, não consegue suportar, gerando tal esquizofrenia que, ao final, influirá em sua performance vocal no dia do show. Por exemplo, Ulivar promete dois solos inexistentes a Mate, desde que este engula seco o fato de ter pego Colin transando com seu namorado (chamado Nilmar) em cima do case de sua Fender.
Já Colin, como se nota, é homossexual. Na verdade, ele possui uma namorada, Cinthia, mas apenas para se sentir melhor aceito entre os quatro outros membros, declaradamente heterossexuais. Cinthia e uma suposta fidelidade são os pretextos para que Colin nunca se envolva com mulheres durante os shows do Arismat. Nilmar, como se nota numa detida releitura, sempre está presente, apesar de nunca ser citado claramente pelo autor.
Aliás, falando em obscuridão, Powl é, definitivamente, o membro mais estranho da banda. Tecladista ruim, está na banda por uma concessão de, claro, Ulivar, que argumenta que uma pessoa ruim pode tocar bem e aprender se estiver com outros músicos que sejam bons. O que Ulivar não conta (mas Rags desconfia) é que é o dinheiro que Powl traz à banda, inclusive alugando dias ruins de boas casas da cidade (que, aliás, nunca é citada nominalmente) para que a banda toque e se mostre, que sustenta o Arismat.
O baixista Rags parece ser o mais sensato de todos: desconfia, age seguindo a lógica e não se deixa abater por críticas reles. Até o último momento, suspeita que abrir o show do Midnight Oil é mais uma tramóia de Powl (o que se mostra falso, afinal). Observa e enxerga os jogos de Ulivar, a desesperada tentativa de aceitação de Colin, o egocentrismo de Mate e os acordes dissonantes e irritantes de Powl. E é justamente Rags que, minutos após a entrada do Arismat no palco, tem uma reação intempestiva, que acaba resultando no final da banda, que a crítica (produzida antes do início do show, numa denúncia a críticos musicais australianos que nunca compareciam aos shows e detonavam ou glorificavam diversas bandas novas, apenas por esporte) apontaria, no jornal do dia seguinte, como a próxima grande revelação do país para a música mundial.
O livro não tem exatamente um bom acabamento, tendo sido impresso num papel de qualidade ruim e com capa em apenas duas cores (amarelo e preto). Algumas páginas estavam soltas no exemplar que adquiri. O vendedor ambulante que me ofertou o exemplar me disse que era um grande exemplo do que a literatura australiana deveria ter se tornado, se os editores tivessem uma grande visão. Mas, em minha opinião, é um livro apenas pouco melhor que o razoável. Mas vale, principalmente pela cena final de Rags, sob o olhar atônito do gigante Peter Garrett, que, é claro, não possui espaço no livro para sequer uma frase politicamente correta.