Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

25.1.05

La muerte de Angelita Martel, de Honorio Bustos-Domecq (Chile, 1947)

Não é raro um autor se proteger sob um pseudônimo. Mas dois ao mesmo tempo? Só podia ser coisa de dois argentinos -- platinos geniais, diga-se: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Eles criaram para si a persona de Honorio Bustos-Domecq, sobre quem Borges discorre: "Con Bioy Casares ocurrió algo misterioso: lo que escribe Bustos-Domecq no nos gusta a ninguno de los dos. Pero surge ese tercer hombre y nos obliga a escribir. Y escribimos contra nuestra voluntad. No nos hacen gracia los chistes, nos desagrada el estilo; pero estamos obligados por ese personaje misterioso que engendramos entre los dos. A mí no me gusta lo que escribe; Bioy Casares creo que se resigna más fácilmene que yo, pero tampoco le gusta mucho. Nosotros, por cuenta nuesra, no escribimos en ese estilo, ciertamente. Así que hemos logrado eso. Hemos logrado que surja un tercer hombre y se encargue de la obra". Chega a ser uma surpresa perceber que, realmente, os estilos dos dois mestres da literatura do cone sul não estejam marcantes e quase deixam de estar presentes nas obras de Bustos-Domecq.
Há pouquíssimos livros publicados, mas um deles, publicado realmente à revelia de Borges e Casares, surgiu numa edição de relativo sucesso no Chile, certamente embalado pela publicação de Seis casos para don Isidro Parodi. Até o fim de suas vidas, os dois escritores negaram que La muerte de Angelita Martel tivesse sido escrito por eles. Se for mentira, a declaração de 1982 de Borges, citada acima, só poderia ser referente a este caso, ocorrido há 55 anos e que fez com que, numa batalha judicial, o livro nunca mais pudesse ver a luz dos leitores. Um livreiro de Santiago, no entanto, me conseguiu (na verdade, foi uma troca dolorosa: este livro pelo meu querido compêndio da revista modernista Klaxon) uma edição, bem estragada, mas muito legível.
Novamente nos encontramos com o habitante da cela 273, don Isidro Parodi. Desta vez, ele é importunado por um funcionário do governo, Ramon Ramoneda, que, a despeito de seu nome patético, veio falar-lhe sobre a morte de sua noiva, Angelita Martel. O fato ainda não ocorrera, o que levou Ramon a solicitar o auxílio do seco homem detido há anos na Penitenciária da Zona Norte. Angelita estava sendo ameaçada por telegramas cifrados, contendo, cada qual, uma pista sobre como será sua morte. Como Ramon trabalhasse no governo, obviamente ele foi solícito para salvar a vida de sua amada. Já tinham chegado três telegramas, cada qual com pistas que não se encaixavam. Mas foram suficientes para dar um norte a Ramon. Que, infelizmente, descobriu que sua casta noiva, além de nada casta, possuía uma queda por cantores de tango e bebidas fortes.
O resignado Ramon, ainda assim, a cada telegrama, foi pedir a intromissão de don Isidro, que, cada vez menos paciente, decifrava e elucidava mais uma pista. Parodi se irritava por saber que, a cada vez, Ramon apenas queria o aval do que ele próprio já pensava e deduzia. Tanto que, ao final, o conselho do condenado foi um simples "És un caso de vivir o morir. Un caso de tuya sensatez." que levou, claro, à morte de Angelina Martel, graças à desistência de Ramon, não apenas de investigar, mas de insistir naquele amor tolo e fútil.
O livro foge às características do livro anterior que trazia o personagem don Isidro Padron: é uma história mais longa, dividida em 10 momentos, bem mais extensa que as seis histórias curtas do volume de 1942 da editora argentina Sur. Porém, é escrita sem requintes e com referências duras, tal qual Casares e Borges conceberam como estilo. Quem escreveu esta história, se a dupla famosa ou outro, pouco importa hoje. É uma boa aventura, leitura saudável, que, por toda esta confusão, pode inclusive ter antecipado (ainda que não influenciado) o surgimento das entidades genéricas e universais no universo escrito, como o são Luther Blissett e Wu Ming: um nome uno para uma entidade coletiva, sem donos ou direitos assegurados.