Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

23.1.05

Pět cizinci, de Miguela Kužmova (Tchecoslováquia, 1981)

Antes que vocês me digam que eu sou um expert em línguas ou duvidem de minha boa-fé crítica, saibam que, apesar do amor que sinto por obras de Franz Kafka e Karel Čapek, infelizmente eu não sei ler tcheco. Para isto eu dependo da boa vontade de alguns amigos, que me traduzem informalmente e, assim, lêem comigo cada um dos poucos volumes que tenho nesta língua. Possuo apenas dois livros dignos de nota para esta Criticaria, sendo um deles a obra aqui em questão, de Miguela Kužmova, nascida em Brno e tragicamente morta num bombardeio à cidade de Sarajevo, cidade na qual prestava serviços humanitários em nome de uma organização não-governamental. Aliás, este espírito se percebe nesta sua obra de 1981 (a edição em minhas mãos, independente, é a segunda, de 1984).
A história, um conto sombrio ambientado na cidade bohemia de Beroun, a meio caminho de Praga e Pizeň. A bem da verdade, a história se passa num grande hotel, nominado Plaza (que não existe na Beroun real aos olhos de todos), situado no limite de município. Eu creio que me falte um estudo mais acurado da geografia tcheca, mas, se eu não me engano, fica numa cadeia de montanhas. Devo confessar que eu não fiquei mais que cinco dias em Praga. Então, algo realmente se perde por uma mínima falta de referências. Para a sorte da literatura, no entanto, estes dados acessórios não são relevantes na trama de Kužmova.
A personagem principal é uma recepcionista recém-contratada chamada Ludmila Sediva. Ela é fã de literatura de suspense, especialmente Stephen King. Durante todo o livro, Ludmila está relendo The Shining (assim mesmo, em inglês -- mesmo porque a versão tcheca, Osvícení, só foi lançada em 1993) e se embrenhando no clima de terror da história que lê. Ao mesmo tempo, exerce sua função de recepcionista de um hotel com pelo menos 20 pessoas hospedadas e mais, pelo menos, outros vinte funcionários. Isso sem contar os cinco estranhos do título (sim, é isto que o título significa). Ela os vê, sempre interagindo com algum ou alguns dos outros moradores ou funcionários do Plaza, geralmente fazendo, ao final da interação, algo estranho, como pondo a mão na cabeça de alguém que vai ficar, horas depois, com enxaqueca, ou ainda dando um beijo numa garota que, em seguida, vai ter um ataque de asma.
A paranóia de Ludmila começa quando seu namorado, Jan, é trespassado por um destes estranhos, para, em seguida, falecer subitamente no lobby do hotel. Ela começa a imaginar que o livro que está lendo pode ajudá-la, de algum modo, a resolver esta situação e dar um jeito nos atos dos cinco estranhos. Sua luta é solitária, apesar da boa vontade de Zdenek, que é apaixonado por ela desde a escola, mas nunca teve seu amor correspondido. O homem, apesar de não enxergar o que Ludmila vê, faz um esforço tremendo para acreditar na veracidade do que ela diz, numa prova de amor gigantesca para ele. Mas Zdenek tenta se enganar: no fundo, ele também crê que Ludmila ficou louca e que, na verdade, de algum modo, é ela quem tem matado as pessoas sem deixar pistas -- a esta altura do romance, três pessoas já tinham morrido em circunsâncias estranhas.
As mortes vão se acelerando e, aos poucos, todos morrem. Uma coisa que parece estranha é que o livro, narrado totalmente em tempo psicológico, parece fraco, numa primeira impressão e até exatamente este ponto, em não explicar porque é que o hotel não foi simplesmente fechado ou por que motivo os outros hóspedes não saíram correndo de lá. Mas, como eu disse no começo, o Plaza não existe na Beroun real para todos, mas, sim, apenas para algumas pessoas. Estas pessoas são os sobreviventes de um acidente entre dois ônibus, um fretado e outro da empresa Plaza (no qual Ludmila havia acabado de embarcar).
Entenderam? Estas pessoas estavam conectadas numa espécie de inconsciente coletivo em microescala, criando a persona do hotel para que pudessem, em suas mentes desconectadas, agir. Uma espécie de ambiente de cura. Os cinco estranhos nada mais são do que a equipe médica designada para salvar a vida dos 43 passageiros. Porém, por algum motivo, Ludmila foi menos suscetível a esta sugestão do que os outros, de modo que sua percepção estava completamente sensível aos médicos, que, ainda assim, não conseguiam de jeito nenhum reaminar a jovem.
O climax do livro acontece próximo ao final, quando a pobre heroína crê que a destruição dos cinco é a saída. Imaginando serem eles espíritos ligados ao hotel, arquiteta um plano para destruir a construção e se libertar. Os cinco tentam, de todas as formas, impedir que ela execute tal ação. No mundo real, isso equivale dizer que os médicos estavam perdendo a batalha para salvar a jovem.
Ao final, ela destrói o hotel e consegue, enfim, eliminar de sua vista os estranhos. Porém, está sem hotel e sem dinheiro (visto que ainda não tinham lhe pago o salário). Largada à sorte em pleno inverno, sem ninguém que a pudesse acolher, Ludmila caminha em direção às montanhas, para um caminho branco sem fim e a sua verdadeira morte. Ou sorte.
Sem muitas palavras: ou o amigo que me traduziu era muito bom ou Miguela, se tivesse tido mais tempo, teria se tornado uma das grandes escritoras tchecas da atualidade. Em minha nada modesta opinião.