Criticaria

Um compêndio de crítica literária dedicado aos volumes esquecidos, inusitados, famigerados ou obliterados de bibliografias oficiais, encontrados em minha viagem de dois anos por cinco continentes.

6.3.05

Törvénytisztelet, de Hanna Madai (Hungria, 2003)

Um dos livros mais novos de minha coleção, representando a nova literatura húngara. Esqueça o livro do Chico Buarque (que não é ruim, apenas dissonante com a recente efervescência literária magiar) e atenha-se à seguinte informação: Paulo Coelho, hoje, é o autor mais vendido por aquelas bandas. Não estou brincando nem um pouco: o homem está à frente de Salman Rushdie, que virá ao Brasil em julho para divulgar suas obras. Dois estrangeiros entre os mais vendidos? Não se deixe enganar tão facilmente, existe ebulição por ali.
Autores novíssimos, como o bom Péter Nádas, vêm abrindo a porteira antigamente escondida pela Cortina de Ferro. É o caso, também, de Hanna Madai. Em comum aos dois autores, a temática. O livro de Péter, Saját halál (Experiência pessoal de morte), conta a história de um grande escritor após a sua morte. Já o livro de Madai, Törvénytisztelet (palavrão que quer dizer, apenas, medo), relata o pavor de uma atriz que, recuperada de um acidente no qual teve o cérebro lesionado, começa a deixar de perceber a luz, sendo introduzida a um cotidiano sombrio e tétrico. Falemos mais sobre esta experiência.
O que poderia ser um exercício de realismo fantástico, surpreendentemente, é tornado uma história com a qual um leitor mediano pode sinceramente se identificar. A fatalidade que ocorre com Anja (leia-se Ânia), um absurdo – uma lâmina de guilhotina cai de um prédio justamente na hora em que ela estava passando na calçada, ouvindo o CD Gran Turismo, dos suecos do Cardigans –, é a única coisa mais incomum. E, ainda assim, justamente este fato é verossímil. Ou, ao menos, é o que a autora quer que pensemos quando dedica a obra a sua amiga de infância, também chamada Anja.
O fato é que somos jogados na ação, sempre cronologicamente, mas não se perde muito tempo entre o acidente e o início da exuberante situação da atriz. Quero reforçar isso, percebam: não é como se ela estivesse ficando cega. Ela realmente perde a percepção que possuía da luminosidade. Pense, por exemplo, no monitor de vídeo no qual você está lendo isso. Diminua totalmente o brilho do mesmo. Fez? Agora diminua, lentamente, o contraste. Repara na sutil diferença? O mundo dela continua visível, cada vez menos, mas o fato é que se torna sombrio. O que faz com que sua percepção acerca das pessoas também seja influenciada por isso. Uma cena linda, por sua tristeza, é quando ela percebe que Sándor, seu namorado, que radiava à luz do sol, agora parece tão belo quanto um vaso antigo – e tão empolgante quanto.
Imagine, então, quando ela começa a reparar que o lado negro de cada pessoa, sempre disfarçado por máscaras sociais, maquiagens e por sorrisos à luz do dia, agora aflora violentamente. Pois, à medida que o brilho some, a nitidez de tudo se torna impressionante. Quase como se tivesse o aguçado olhar de uma ave de caça. Todos, das pessoas na rua aos amigos e empregadores do set de filmagem de seu novo filme (homônimo ao título do livro), se tornam, aos olhos de Anja, insuportavelmente temíveis. E o filme, que continua a ser rodado, torna-se a melhor experiência de fuga para ela, que é a protagonista. Na película, Anja é Monika, que se vê acuada num quarto do qual nunca sai, sendo alimentada sempre por enfermeiros diferentes e tratada, a cada dia, como se fosse uma pessoa diferente. Mas é tamanha a paranóia real na mente de Anja que, a cada dia de filmagem, a situação de sua personagem lhe parece dar tão pouco medo que, aos poucos, ela percebe que a única alegria que ainda possui é interpretar o medo de mentira e sem verossimilhança de Monika. Pois, quando as filmagens acabarem, Anja saberá que a única coisa que a espera é o verdadeiro medo.
Um belíssimo livro de terror psicológico, com poucos personagens, 224 páginas impressas competentemente e um inesperado autógrafo da autora, natural de Budapeste e que me abordou quando eu lia tranqüilo seu livro em uma pequena praça da cidade, no último mês de junho. A Hungria, meus caros, pode ser surpreendente. Garanto.